domingo, 1 de junho de 2014

Um Cão Andaluz e o silêncio que fala

Um Chien Andalou é o título em francês para o filme dos espanhóis Luís Buñuel e Salvador Dalí. A película lançada em 1928, na França, é umas das mais representativas obras da filmografia experimental surrealista.



“A civilização nos apresenta imposições com cujo ônus de sofrimento todos
têm de lidar e que se originam de três fontes: “[...] o poder superior, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade”.
(FREUD, 1930 [1929] / 1996, p. 93 apud SILVA, 2012, p. 61).

A escolha da citação faz-se de maneira proposital. Nela estão contidos os conceitos, embora implícitos, fundamentais que regerão o entendimento da Teoria do Recalque, que veremos adiante no presente ensaio.
Certamente, Um Cão Andaluz é a narrativa que melhor representa o Manifesto Surrealista, introduzido por André Breton, cujo ‘movimento em questão almejou alcançar o espaço no qual o homem se libera de toda repressão exercida pela razão’, é o que o afirma BRIDI, DA SILVA, PONTES e CAMARGO (2011) em ensaio intitulado ‘Movimento surrealista: da torre eiffel para o mundo’.

‘Era uma vez’ é a expressão que dá início à película de Buñuel e Dalí, aludindo às obras literárias que desde sempre se produziu: narrativa linear, com começo, meio e fim e sua forma romanceada de enredo. Ao mesmo tempo, porém, essas obras com estrutura engessada transmitem ao interlocutor, seja do livro ou do filme, um estilo cuja recepção se dá de maneira mastigada ao enredo que está para acontecer, marcando assim a previsão e a superficialidade deste.
Subvertendo as leis os espanhóis fogem do padrão produzindo uma obra que têm como elementos: a sátira, o desejo reprimido e o inconsciente. Este último vale-se do ponto-chave para os estudos de psicanálise de Freud – o recalque.

‘O inconsciente’ em Freud é o material recalcado. Para que haja o recalque a consciência é considerada como algoz. Trocando em miúdos, os desejos são reprimidos pela consciência, que faz o seu próprio julgamento; já o inconsciente é onde habitará o material de fuga do jugo da consciência. Tudo que não é permitido na consciência o inconsciente absorve convertendo em desejos, sonhos, o mundo fantasmagórico das portas que se abrem e se fecham indo ver no mar a sua razão - o absurdo é a sua força motriz. Eis o sonho, nada mais que isso.
Um Cão Andaluz se tivesse sido feito por Freud seria, talvez, a personificação do sonho e da inconsciência.

O anacronismo recorrente no filme poderia ser o relato do sonho de muitas pessoas. A maneira contada pela narrativa passeia de ‘oito anos depois’ para dezesseis anos antes’, num contexto implausível. Cumprem-se as noções de existência do Manifesto Surrealista reiterado pela ausência de lógica e exaltação à liberdade de criação, como num ócio criativo e catártico dos artistas que maquinam sua obra.

              A libertação do regime vigente poderá ocorrer na forma de arte ou na literatura como legítima defesa. Um trecho do filme que elucida essa libertação do regime pode ser vista na cena em que o ator Pierre Batchef busca satisfazer seus desejos sexuais representados pelo toque das mãos sobre os atributos femininos – os seios. Para reprimir é necessário levar nas costas dois pianos de cauda – representando a arte como instrumento libertador -, e dois personagens masculinos vestidos de eclesiásticos - representando o clero ou a instituição religiosa ou as várias instituições que reprimem o ato individual da liberdade. Em outra cena, não menos surreal, dois personagens masculinos se confrontam e um deles concede ao outro, dois livros, que se transformam em armas a serem disparadas, eis a literatura como instrumento de legítima defesa.
A expressão ‘um grande desejo de matar’ é representada pelo êxodo das formigas nas mãos do ator, que pode ser interpretada pela quebra por excelência das regras, corrobora a isso LACAN (1957):

“O homem é efetivamente possuído pelo discurso da lei, e é com esse discurso que ele se castiga em nome dessa dívida simbólica que ele não cessa de pagar sempre mais em sua neurose”.
(LACAN, 1957 [1956], p. 276 apud SILVA, 2012, p. 68)

O desejo de matar é o desejo primário do homem. Matar-se a si todos os dias. E recompor-se na vida corpórea, espiritual e artística. Matar a ‘Consciência’.

A crítica feita aos costumes da sociedade se faz presente em pelo menos três momentos do filme. Um desses momentos transmite a banalidade acerca da morte na cena em que uma mão cortada e jogada na rodovia é manuseada por uma mulher com um pedaço de madeira; essa mesma mulher espera a morte vinda num atropelamento de carro, sendo assistido por dois outros personagens que não esboçam reação ao fatídico atropelamento. A crítica à banalidade, anteriormente referida, pode ser encontrada no dia a dia da sociedade, no consumo diário das notícias policiais.

Retornar à frase inicial de Freud é contextualizar o que se pretende transmitir na película de Buñuel e Dalí: a sociedade sofre sempre mais e pior pelo pensamento gerado no outro acerca daquilo que somos, queremos, temos ou parecemos ser e ter. Um Cão Andaluz vai na contramão da produção clássica de um enredo ideal, de um fantasma inverossímil da realidade, e porque não dizer utópico? A realidade aqui é a verdade de cada um. Verdade conduzida na obra inacabada daqueles. Não pela incoerência do diálogo mudo. Afinal, nem uma palavra foi dita, mas muitas outras foram sendo desveladas por parte de quem as lê e refaz a ideia original. Uma reescritura é sempre uma extensão do pensamento original, complementa e deixa um legado à humanidade. O legado da percepção do universo abismal ao nosso redor.     

O silêncio serve ao aguçamento dos outros sentidos que antes eram marginalizados. Ponto para o cinema mudo. Neste filme não foi preciso ouvir, apenas ver e sentir o que estava sendo dito. A repressão serviu à expressão. Repressão que é destrinchada por vários momentos na obra de Freud, Buñuel e Dalí. Nas Teorias da Comunicação estuda-se uma repressão silenciosa, intitulada de Teoria da Espiral do Silêncio, alcunha da alemã Elisabeth Noelle-Neuman que diz:

“O que entendemos por silêncio está ligado diretamente ao medo que todos os indivíduos têm de se encontrarem isolados quanto aos seus comportamentos e opiniões. [...] A metáfora sinalizada pela espiral deixa evidente a questão progressiva da opinião majoritária, e não apenas cíclica da postura do silêncio. Quanto mais uma opinião expressa como aquela dominante tiver representatividade e repercussão, menos as opiniões minoritárias tendem a ser transmitidas”.
(SILVA, 2011, p. 34-35)

Um Cão Andaluz é o ‘soco’ no tempo, na cronologia das coisas e sistemas cristalizados e impossíveis de serem quebrados. Possibilidade que não se cogitou na produção deste. Se em outra época existia a fala da mulher, a voz do negro, o desejo reprimido do indivíduo realizado apenas no sonho – o inconsciente; nesta, o pensamento reacionário, a repressão e a consciência – a razão - provam do seu próprio veneno. Reprimiu-se o repressor. Libertou o reprimido. A redundância é permitida na vanguarda surrealista encabeçada por Dalí e Buñuel, onde o grotesco será exaltado e não por falta de razão, mas pelo excesso de inconsciência. 



* Graduando do 7º período de Comunicação Social, no Centro Universitário Estácio do Ceará, participou do Curso de Extensão: Literatura e Cinema: um passeio intersemiótico pela cultura iberoamericana na Universidade Federal do Ceará – UFC.

Referências

BRIDI, João Pietro; CAMARGO, Maria Aparecida Santana, DA SILVA, Anna Paula Zamberlan; PONTES,
Karine dos Santos; Movimento surrealista: da torre eiffel para o mundo. Disponível em: <http://www.unicruz.edu.br/seminario/artigos/humanas/MOVIMENTO%20SURREALISTA%20DA%20TORRE%20EIFFEL%20PARA%20O%20MUNDO.pdf> Acesso em: 26 de maio de 2014.

DEUS, Juliana Almeida de. A construção das narrativas jornalísticas à luz do filme “um cão andaluz. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCL/Pesquisa_e_Extensao/A_CONSTRUCAO_DAS_NARRATIVAS_JORNALISTICAS_A_LUZ_DO_FILME__UM_CAO__ANDALUZ_.pdf> Acesso em: 25 de maio de 2014.

FREUD, Sigmund, 1856-1939. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos, (1914-1916) / Sigmund Freud ; tradução e notas Paulo César de Souza,  São Paulo: Companhia das Letras, p. 82-138, 2010.

JORGE, Juliana David. A construção da associação livre na obra de Freud, Belo Horizonte, MG, p. 75-115, 2007.

LUCINDA, Tatiana Vieira; ALVARENGA, Nilson Assunção. Um Cão Andaluz: lógica onírica, surrealismo e critica da cultura. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2007/resumos/R0081-1.pdf> Acesso em: 25 de maio de 2014.

MURARI, Lucas de Castro; PINHEIRO, Fábio Pinheiro Francener. O expressionismo alemão e suas múltiplas devirações americanas. Disponível em: <http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/Comunicacao_2012/Publicacoes/O_Mosaico/Numero_7/OMosaico7_Artigo11_Murari.pdf> Acesso em: 26 de maio de 2014.

SILVA, Angela Cristina da. Os fundamentos freudianos e as aplicações da psicanálise: condições, possibilidades e implicações, Curitiba, PR, p. 61, 2012.

SILVA, Sandro Takeshi Munakata da. Teorias da comunicação nos estudos de relações públicas: lacunas e indicações de novas aplicações, São Caetano do Sul, SP, p. 34-35, 2011.

YOUTUBE. Um Cão Andaluz. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WL81wuYbFwI Acesso em: 25 de maio de 2014.


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